Estatizando o bom-senso...


No início desta semana, a Prefeitura de Salvador deve regulamentar a lei que proíbe o fumo em ambientes fechados, públicos ou privados, da cidade. O projeto, aprovado há duas semanas na Câmara e sancionada pelo prefeito João Henrique na semana passada, prevê multas de R$ 200 a R$ 2 milhões tanto a fumantes quanto a proprietários de estabelecimentos que permitirem a prática. O vereador que propôs a nova lei, Alcindo Anunciação, convoca a população a ajudar na fiscalização, fotografando flagrantes de desrespeito à norma e enviando as imagens à Sucom, para que a autuação possa ser realizada.

Não tenho dúvida que a lei fará sucesso em Salvador. É, de longe, a cidade mais antitabagista que conheço. O IBGE comprova: entre as capitais brasileiras, a baiana é a que concentra menos fumantes, 11,5% da população, ante 15,6% de média nacional e 21,5% da cidade que registra a maior concentração de tabagistas, Porto Alegre.

No dia-a-dia, a estatística toma forma de atitudes que beiram o engraçado. Não-fumantes abanam o ar quando cruzam com alguém "fazendo fumaça". Atravessar a rua ao avistar um fumante vindo em direção contrária também é socialmente aceito. Tirando o inusitado, não vejo nada de mau nas situações. O não-fumante tem todo o direito de não querer sentir o cheiro do cigarro (ou de, supostamente, não ser infectado pelas 850 mil substâncias tóxicas do produto). O fumante - dado que o hábito de fumar, em si, não é ilegal - também tem todo o direito de degustar seu bastonete em brasas, ainda mais em locais abertos.

Não vou entrar no mérito específico da lei. O ponto é outro. Parece-me que, gradativamente, as pessoas estão perdendo as noções básicas de "certo" e "errado", de moral, de ética - de vida em sociedade, em uma visão mais ampla. E, nessa toada, aceitam (quando não incentivam) que a entidade "Estado" se intrometa e legisle sobre questões cada vez mais íntimas. Estaríamos admitindo nossa incapacidade de formar e transmitir valores e conceitos?

A situação pode (ou tende a) derivar a um cenário no qual as pessoas vão se balizar apenas pelo "legal" e "ilegal" para decidirem entre suas opções. De certa forma, isso já acontece em algumas áreas. A CPI da Petrobras, só para citar um exemplo, tende a dar em nada, como tantas outras, porque não há, até o momento, nada de "ilegal" detectado nas operações da empresa. Pode-se discutir a "moralidade" de se beneficiar entidades X e Y com empréstimos e contratações baseados em proximidade política ou pessoal, mas não se pode discutir a "legalidade" das ações. Aos olhos da legislação pura e simples, não há irregularidade.

Isso me faz lembrar de uma das histórias mais absurdas (pareceu-me, ao menos, na época) que lembro de ter ouvido na infância. Estávamos, minha família e eu, em Poços de Caldas (MG), hospedados em um hotel que, até a década de 1940, abrigava um cassino - não me lembro do nome, agora. Quem contava a história do estabelecimento era um gerente do hotel. Daqueles que, pelos profundos vincos no rosto e pela extrema familiaridade com o local, davam a impressão de terem nascido, crescido, casado, tido filhos, netos e, quiçá, bisnetos ali.

Animado, ele contou como o local - meio decadente, àquela altura - era o centro pulsante da região. Detalhou a forma como conheceu empresários, artistas, políticos e outras figuras de destaque, do Brasil e do exterior, na época em que os jogos de azar eram liberados no País. Anos de ouro. Até que o presidente Eurico Gaspar Dutra resolveu acabar com os jogos, com um decreto assinado em 30 de abril de 1946. "Dona Santinha (como era conhecida a primeira-dama, Carmela Teles Leite Dutra) não gostava de apostas", disse o tal gerente, quando perguntei o motivo para o presidente ter feito uma coisa que, à época, me pareceu tão sem sentido.

Lembro de ter ficado chocado com a resposta. Como é que um presidente poderia decidir um assunto de tal relevância com base no capricho da mulher? De uma hora para outra, as pessoas deixaram de ter o direito de escolha por uma vontade da primeira-dama? E todos aceitaram a situação passivamente?

Meus pais tentaram explicar que não era só isso. Alegaram que o jogo viciava, que muitas famílias perdiam tudo nas mesas de apostas, que havia uma série de criminosos que usavam os jogos de azar para camuflar outras atividades ilícitas... Os argumentos nunca me convenceram completamente. Hoje, o tema "jogos de azar" voltou à pauta de discussões na Câmara Federal.

Outro exemplo: quando comecei a dirigir, e isso não faz tanto tempo, usar o cinto de segurança era uma escolha do motorista e dos passageiros. Eu usava - e não via motivo para não fazê-lo. Mas aí vieram os deputados e criaram uma lei que obriga o uso. A não utilização do equipamento virou falta grave, passível de punição com multa. Os argumentos para tal decisão são palatáveis, claro, a começar pelos gráficos estatísticos que mostram como acidentes automobilísticos são menos letais quando os envolvidos estão usando o cinto. Mas justificam a "obrigação"? O governo tem o direito de "proteger" o cidadão, mesmo contra sua própria vontade?

Dia desses, vi uma reportagem sobre uma cidade (supostamente, no interior paulista) que decretou que adolescentes não podem ficar na rua depois de um determinado horário - 1 hora ou 2 da madrugada. Não consegui me focar nos detalhes pelo choque que tive com a notícia. Como assim? É a administração municipal que decide até que horas os adolescentes ficam na rua? Onde raios foram parar os pais desses jovens?

Dada a forma como as coisas avançam, não me surpreenderia se surgisse uma lei obrigando, sob pena de multa, que as relações sexuais sejam realizadas apenas com o uso de camisinha. Ou uma que puna, com prisão, talvez, o doente crônico que não consumir os remédios necessários nos horários corretos. Os argumentos para a aprovação de tais propostas não diferem dos das leis que obrigam o uso do cinto ou proíbem o fumo... Caminhamos, a passos largos, ao precipício do bom-senso privado.

1 comentários:

Marlla Farias disse...

Nota 1: Sou contra o cigarro, você bem sabe. Odeio o cheiro, o gosto que fica, não respiro direito. Aí fiquei feliz com a notícia, à princípio. Mas depois pensei: "que chatice! E agora, vou reclamar de que? A ideia era escolher tal lugar pq tinha menos ou mais fumantes, arrumar jeitos de fugir da fumaça..." Agora não tem mais isso.
Nota 2: Confesso: fumar tem lá suas vantagens. Sempre que o lugar estava apertado, era só acender o cigarro e a "vizinhança" e o incômodo sumiam. Ok, a técnica só funcionava aqui em SSA.
Nota 3: Tenho invejinha da D. Santinha! Da primeira-dama da "nossa cidade", não.

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